A fila estava enorme. Chovia bastante. Fim de tarde.
Os carros estavam buzinando incessantemente. Um motoqueiro atrapalhava o
andamento da fila do pedágio. Catava umas moedinhas no bolso. Justo na fila de
Verônica. Cobradora de pedágio. Cabine seis. Quando isto acontecia, com
freqüência, Verônica ouvia todo o tipo de injuria. Não foi diferente naquela
tarde de sexta feira. Palavrões, xingamentos, nomes feios...tudo muito
habitual. Há sete anos. Desde que começou a trabalhar. Quando assinou sua
carteira profissional. Não sabia fazer outra coisa.
De cabelos ruivos pouco tratados, pele sardenta,
dentes perfeitos e de uma beleza muito particular, Verônica também trabalhava
na cabine dois. Mas preferia a cabine seis. Estava mais acostumada com a cabine
seis. De mais a mais, a cabine dois era muito tumultuada. O tráfego sempre era
mais intenso lá. Por isso preferia a cabine seis.
Naquela mesma tarde chuvosa os carros iam passando
lentamente no moroso processo de arrecadação do dinheiro para o uso da rodovia.
Fecha a cancela, pára o carro, pega o dinheiro, entrega à moça, recebe-se o
troco, apanha-se o recibo, levanta-se a cancela e quando termina, vem o
próximo. Lá pelas nove da noite, o fluxo de veículos começava a diminuir. Um
carro preto, daqueles de luxo, aporta na cabine seis. O condutor, um rapaz
muito bem trajado, ostentava correntes de metal nobre no pescoço, pulseira
reluzente no pulso.Não parecia
bijuteria. Completando a indumentária o homem usava um relógio de ouro.
Dois anéis fantásticos postavam no anelar.Isto tudo foi visto depois que ele
parou o carro e abriu o vidro da porta. Um aroma muito agradável espargiu de
dentro do veículo. Parecia algum daqueles perfumes importados que levam três
dias para sair do corpo. Verônica, que geralmente não observava a fisionomia de
nenhum dos condutores, decidiu olhar pra dentro do automóvel, instigada pelo
perfume. Gostou muito do que viu. Um moço muito bonito. Realmente muito bonito.
Ao final do rápido atendimento, ainda ouviu algo que jamais imaginou que alguém
declararia ali naquele posto de trabalho. O rapaz simplesmente dobrou o pescoço
para fora do carro e antes de acelerar e partir disse:
– Muito
obrigado! Boa noite! – Disse, acenando e indo embora.
Apenas um entre os milhares de motoristas atendidos
naquele dia.
A chuva caiu durante todo o fim de semana. Três dias
depois, na segunda-feira, o clima era outro. Um calor intenso. Um sol de
rachar. A noite estava quente. Lá pelas nove, encostou um carro vermelho
metálico e vidros fumês. Na cabine seis. Verônica, de saco cheio com todo o dia
cansativo de trabalho, recebeu o dinheiro de forma ríspida. Entregou o recibo
com certa antipatia. Não pôs sentido em quem estava atendendo. Nem olhou. Foi
no fim que ouviu uma voz muito educada e vigorosa:
– Muito obrigado! Boa noite! – Só deu tempo de Verônica
observar um faceiro sorriso refletido no retrovisor. Era ele. O rapaz de outro
dia. Só podia ser. Ninguém diz muito obrigado. Ainda mais duas vezes num
intervalo tão curto de dias. E aquela voz lhe soou familiar. Aquilo poderia não
significar nada, mas de certa forma Verônica estava fascinada por um sujeito
que trafegava pela rodovia.
No dia seguinte, portanto na terça-feira, Verônica ficou
atenta, vigilante, procurando encontrar aquele que poderia ser o seu príncipe
encantado. Já eram dez horas da noite e nada. O turno de Verônica se encerraria
e o pintoso rapaz não apareceu. Ele de fato não cruzou aquele pedágio naquela
terça-feira. Verônica então começou a achar aquilo tudo uma ilusão de sua
cabeça. Paranóia. Uma pessoa desequilibrada. Doida pra arranjar um namorado.
Não poderia se apaixonar por uma pessoa que nem conhece. Nem sabe quem é. Só
pelo fato de ser educado e dizer: “muito obrigado! Boa noite!”? Uma vez, há
algum tempo atrás, um outro rapaz lhe disse “valeu!falô!” e nem por isso se
apaixonou por ele...Prometeu para si mesma que não iria mais pensar naquele
rapaz.
Foi na quinta-feira que ele reapareceu. Desta vez estava
num carro branco com rodas de liga-leve. O cabelo igualmente penteado. Verônica
esqueceu-se de sua promessa particular. O homem, como das outras vezes, sorriu
voluptuoso. Verônica tratou de se comunicar:
–
Olá! Tudo bem? – Disse com algum acanhamento.
–
Tudo. Tudo ótimo. E com você?
–
Ah! Você sabe né! Trabalhando muito como sempre... –
Foi dizendo enquanto demorava computar as moedinhas que recebera do cara. Foi
aí que o motorista do carro de trás começou a buzinar e gritou alguma coisa do
tipo “vão namorar em outro lugar.”
– A propósito, como é o seu nome? –
Perguntou o rapaz dando sinal de que precisava terminar a conversa.
–
Verônica! Verônica!Eu trabalho sempre aqui na cabine
seis!!!!!!!
O rapaz foi embora. Fez um tinindo com o polegar
alegando que tinha entendido. Verônica estava arrebatada. Ficou conjeturando.
Imaginou coisas extraordinárias a respeito do homem perfumado e ataviado de
jóias. Devia ser rico. Muito rico. Tinha muitas jóias. Deveria ter muitas
posses. Parecia ser um homem abastado. Ainda mais com todos aqueles lindos
automóveis.
Na sexta-feira ele também apareceu. Quando o relógio
aproximava marcar nove horas, Verônica pôs um batom na boca. Penteou os
cabelos. Não se perfumou. Queria sentir a fragrância suave do galã. Na batata!
Nove da noite veio chegando ele. Na cabine seis. Veio de longe, parece. Foi
frenando sua caminhonete cabine dupla de cor acinzentada. Na cabine seis.
–
Oi! Tudo bem Verônica?
Toda trêmula e encabulada ela disse:
–
Sim! Quer dizer... não...(ops!) quer dizer, sim, eu
acho! Mas ainda não sei seu nome...
O moço transfigurou-se.
Aquela figura tão viril parecia ter engolido um bicho. A feição do bonachão
avermelhou-se. Mas antes que a ruiva perguntasse novamente respondeu:
- Onofre...Quer
dizer...Carlos...bem....Exatamente é....Carlos Onofre...Isso....Carlos Onofre.
-
Que nome lindo você tem! - Disse a menos encabulada Verônica.
- Pois é! Foi meu pai quem me deu. Gosto dele. Meu
pai quem me chamou assim. – Agora mais abrandado.
Enquanto tudo isto acontecia, Verônica apanhava as
moedas e as manuseava com um sorriso permanente.
-
Você tem carros muito bonitos. São todos seus?
- Sim. Sim. Sim. São
todos meus sim. Claro que são. Muito bonitos não??! Gosto muito deles.
A conversa não pôde
continuar. O supervisor de Verônica apareceu. Olhou com cara feia. Não sabia o
que estava acontecendo, mas aquele sujeito demorou quase cinqüenta segundos na
cabina do pedágio.
Daquele dia em diante,
ele apareceu todos os dias. O Carlos Onofre. Todos na cabine seis. Conversam
todos os dias um pouco. Durante os trinta segundos tolerantes de permanência
nos guichês. Conversavam sobre tudo. Verônica e Carlos Onofre. Todos os dias um
assunto novo. Conversavam desde a invasão norte americana no Iraque à invasão
dos alienígenas nos desertos chilenos. Também ouviu o desabafo de Verônica
quando seu primo de terceiro grau faleceu e não recebeu permissão da empresa
para ir ao enterro. Todos os dias um carro novo. Carlos Onofre sempre falava
alguma coisinha sobre o novo modelo que estava dirigindo. Carros azuis,
amarelos, prateados, avermelhados...uma porção deles. Todos de sua propriedade.
Verônica, cada vez mais apaixonada. Carlos Onofre cada vez mais sedutor.
Poderíamos dizer que aquele era o pedágio do amor. O lugar perfeito para dois
amantes.
Até que um dia, depois
de passados meses, Verônica decidiu que estava na hora de saírem. É. Deveriam
sair sim. Um encontro. A essa altura Verônica já tinha o numero do telefone
celular de Carlos Onofre. Na hora do almoço telefonou. Era uma sexta-feira. O
pedido foi inesperado. Carlos Onofre aceitou. Gostou do convite. Estava
interessado. Naquela mesma noite iriam sair.
A noite chegou. Verônica
levou um belo vestido para o trabalho. Iria se trocar lá mesmo. No vestiário.
Aprontou-se. No horário marcado, às dez horas, depois do fim do turno de
trabalho de Verônica chegou o homem. Carlos Onofre. Conduzia um maravilhoso
modelo esportivo. Daqueles carros que só vemos em feiras de automotivos. Grená.
Um grená forte. Verônica sentiu-se como a Cinderela. Parecia a Cinderela.
Estava muita bem trajada, com seus cabelos trançados como arrebóis decaídos por
sobre um gracioso vestido índigo. Sentou-se com muito cuidado no banco de couro
do cupê, depois que o cavalheiro dos sonhos abriu a porta. Passaram no pedágio.
Pela cabine dois. Controlada por Velma, que sorriu para a amiga no assento do
carona. Parecia um sonho. O casal de pombinhos na primeira noite enamorada.
Onofre fez mistério. Não disse para onde iriam. Disse apenas que era um lugar muito bonito. Um
restaurante. A noite estava muito bonita e o luar clareava a estrada. Poucos carros.
Pouco movimento. Tudo perfeito. O rádio sintonizava uma rádio romântica. Que
tocava uma canção romântica. Em inglês. Música americana. Muito embora eles
preferissem sertanejo. Descobriram esse gosto em comum em uma das conversas na
cabine seis. A viagem, de curta duração, parecia uma longínqua jornada embalada
pela apaixonadiça conversa de encantamento, típicos galanteios, troca de
elogios e impressionamento de quem quer seduzir outrem. Se de um lado Verônica
estava toda boba, certa de que algo completamente surpreendente lhe acontecia,
Carlos Onofre também não parecia menos truão. Atendia o celular várias vezes,
quem sabe por ofício, mas em todas as vezes não se demorava, tratava de mandar
recados de que depois retornaria, de que não podia falar, coisas assim, de quem
tem coisa mais importante pra fazer ao invés de dependurar-se pelo pescoço ao
ouvido.
No destino revelado, a
cena não mudava. O destino, e agora me refiro a sorte, lhes pegara de jeito e
parecia ter formado mais um daqueles pares românticos que decidem dali em
diante partilharem coisas. Estacionou o carango super moderno sob os afáveis
olhares da moça, que prestava atenção em cada detalhe. A passagem de marcha a
ré, o jeito de olhar o retrovisor... ao descer a visão parecia lhe pregar uma
peça. Nunca vira um lugar tão requintado, coisa de cinema. Conduzida pela mão,
Verônica adentra ao restaurante. Parece não crer no íntimo que tal momento lhe
ocorria. Para Onofre e todos os demais, portava-se como uma dama da nobreza embrenhando-se em seu lugar comum. Um jantar
memorável, um encontro que atingiu o mais alto grau numa escala de valores;
incomparável, único, sem-par. Isto indicava muita coisa. Que a amizade poderia
ser promovida a relacionamento. No quesito beleza os dois estavam bem servidos.
Na amabilidade também. Trocaram o primeiro beijo. Descobriram que amavam frutos
do mar. Verônica adquiriu uma porção de conhecimento sobre automóveis. Onofre
ficou sabendo que as moedinhas de troco do pedágio que alegam ser doadas a
instituições de caridade, na verdade são rateadas entre o supervisor e o
gerente do pedágio no caixinha do mês. A mãe de Verônica faleceu num
curto-circuito do ferro elétrico. Por trauma, Verônica não passa roupas. O pai
de Onofre morreu a quinze anos, metralhado, confundido com um chefão do
tráfico. Onofre jurou vingança. Desmentiu, em meio a sorrisos desconcertados.
Demorou a convencer Verônica de que estava brincando. Nunca pegara em armas, alegou
ele. Pediu desculpas por assombrar a moça. Não estragou nada. Já estavam em sintonia.
Uma convergência de
fatores aproximavam-nos mais. Saíram de mãos dadas, desta vez como namorados.
Carlos Onofre pagou a conta. Um manobrista se encarregou de parar o carro na
entrada. Pegaram a estrada, de volta a cidade. A certa altura, Verônica recostou-se
sobre o ombro de Onofre. Admirando a beleza do painel, perguntou,
inocentemente:
- Onofre, este é um
daqueles carros que atingem de zero a cem em dez segundos?
No que o homem
respondeu:
- É sim. Vou te mostrar.
Nessa fala, deu uma
pisada severa e acelerou como um supersônico, rasgando o ar, cortando o vento,
dirigindo em alta periculosidade. O intuito fora o de impressionar a garota.
Mas conseguiu arrancar-lhe um grito de apavoramento, uma insatisfação
desaprovadora:
- O que é isso
Onofre???? Não te pedi pra correr assim! Pelo amor de Deus pára esse carro que
eu quero descer.
Sentindo que deu mancada
com seu exibicionismo fortuito, desacelerou e tentou consertar as coisas.
Tentou ser o mais lhano que pode:
- Meu bem, me desculpe
não quis te aborrecer. Me desculpe.
Recuperada de seu susto,
alargou o sorriso de outrora, com ternura respondeu, apoiando-se no “meu bem”
pronunciado pelo companheiro ecoando até agora em seus ouvidos:
- Tudo bem meu amor. Só
não faça mais isso. Tenho medo da velocidade.
Apaziguam-se os ânimos.
Dali pra frente Onofre prometeu a si mesmo não dar mais gafes. Verônica fingiu
que nada desagradável aconteceu. Na noite escura iluminada pela lua que não se
escondia por nada neste mundo, a viagem continuava serena até que uma luz
surgiu no retrovisor. Uma luz intermitente. Vermelha. Quanto mais andavam, mais
a luz se aproximava. Notou-se. Tratava-se de outro carro. Os faróis desenhados
abaixo o girofelx piscando em cima. Uma viatura policial. Ou poderia ser uma
ambulância. Um carro de bombeiros. O pretume não revelava a identidade visual
do veículo. Verônica, entretida com a conversa nem notou a perturbação
disfarçada de Onofre. Também não notou que sorrateiramente o rapaz, dessa vez
de leve, afundou novamente o pé no pedal de corrida. Arrancou, abriu o gás,
pulou fora, vazou, escafedeu-se das vistas do carro de trás. Com o motor
possante, fora tarefa fácil. Inesperadamente, ao fazer a curva, depararam-se
com uma barricada, carros de policia saindo pelo ladrão. Verônica nada entendeu.
Onofre gelou até a última vértebra da espinha dorsal. Freou com tudo. Parou a
carruagem, cantando os pneus abruptamente. Não tentou fuga. Não tinha saída.
Rapidamente fora sitiado. Não houve espaço para manobras. Verônica assustada.
Onofre desatinado. Um gato no saco, um rato na ratoeira, um boi no matadouro,
um peixe na rede, uma minhoca no anzol. Verônica assustada. Onofre cercado. A
policia chegou. Armas em punho. Um, dois, três...uma dezena. Gritos de ordens.
Mãos ao alto. Saiam do carro. Mãos a vista. Verônica desolada, atônita. Cumpriu
as ordens. Ouviu Onofre dizer algo ‘calma, tudo vai ficar bem’. Um policial
saiu de lá do meio dos carros trazendo duas algemas. Mãos para traz. Foram
enquadrados. Verônica, sem culpa. Mas ouvira a sentença ministrada ao seu novo
amor:
- Luiz Carlos Pereira da
Silva. Enfim te pegamos. Você vai passar os próximos anos da sua vida de ladrão
de carros na prisão. Carros de luxo agora só por figurinha.
Um tapão bem dado nas
costas do meliante que foi conduzido ao camburão. Verônica, sem entender muita
coisa, mas entendendo perfeitamente que estava encrencada ainda ouviu de um
homem da lei:
- E você menina, devia
se envergonhar de andar atrás desse mau elemento. Cúmplice de vagabundo e
vagabundo pra mim é a mesma coisa.
Chorosa, adentrou.
Sentou no banco de trás da viatura. Seguiram no comboio, rumo a delegacia. Onofre,
cujo nome de batismo era Luiz Carlos, foi no camburão da frente. Verônica, no
carro do fim da fila. A praça do pedágio apareceu no horizonte. O motorista, um
policia moderno, numa puxação de saco característica dos bajuladores
profissionais, dirige a palavra ao delegado sentado no banco de trás, ao lado
de Verônica:
- Chefe, qual cabine eu
passo? Na dois?
O chefe respondeu
certeiro:
- Não, não, eu prefiro a
seis. Vai na seis. A dois é muito tumultuada.
FIM
Reflexão de hoje: As aparências enganam. Não sejamos ingênuos com questões importantes de nossas vidas.